Entrevista com Cristian Verardi
Cristian Verardi nasceu em 6 de fevereiro de 1975, em Encantado (RS). É graduado em Letras pela UFRGS e atua como cineasta, roteirista, ator e crítico de cinema, com predileção pelo gênero fantástico.
Como pesquisador, tem artigos publicados em revistas como Teorema, Hatari e Cine Monstro Horror Magazine, além de participar dos livros Cemitério Perdido dos Filmes B e Fim do Mundo: Guerras, Destruição e Apocalipse na História e no Cinema. É curador da mostra A Vingança dos Filmes B e assessor de programação da Sala P.F. Gastal, na Usina do Gasômetro.
Vamos às 7 perguntas capitais:
1) É comum lembrarmos com carinho do início da nossa relação com o cinema. Os filmes ruins que nos marcaram, os cinemas frequentados (que hoje, provavelmente, estão fechados), as extintas locadoras de VHS e DVD que faziam parte do nosso cotidiano. Conte-nos um pouco de como é sua relação com a 7ª arte. Quando nasceu sua paixão pelo cinema?
C.V.: Toda vez que reflito sobre isso, tenho a sensação de que a paixão pelo cinema sempre esteve presente em minha vida. A lembrança mais remota que tenho da infância é a de estar no colo da minha mãe, no escuro de um cinema, no final dos anos 1970. Recordo que era um faroeste, provavelmente algum western spaghetti. Lembro-me da sensação de imersão diante da tela, gigantesca aos olhos de uma criança, do som alto dos tiros, do cheiro peculiar da sala, um misto de mofo e cigarro. Daquelas experiências que ficam impressas na memória afetiva.
A consciência de que eu era um cinéfilo tomou forma na adolescência, quando preferia faltar aos jogos de futebol com os amigos para assistir à Sessão da Tarde, ou deixar de ir a alguma festa para varar a noite vendo filmes no Corujão. Isso tudo antes da ascensão dos videocassetes, que, nos anos 1980, ainda eram um artigo de luxo. Nos anos 1990, eu já escrevia resenhas sobre filmes para fanzines. Recordo ter tido uma redação reprovada na escola por fugir do tema e entregar uma análise sobre Morte do demônio, uma provocação juvenil movida pela paixão.
2) Tyler Durden disse em Clube da Luta: "As coisas que você possui acabam possuindo você". Ser colecionador é algo que se encaixa neste conceito, já que você se torna escravo do colecionismo. Coleciona filmes, CDs ou algo relacionado à 7ª arte?
C.V.: Cinefilia e colecionismo, na maioria dos casos, são indissociáveis. Sou quase um acumulador de tudo que se relaciona ao cinema: filmes, livros, CDs, cartazes. No entanto, a maior parte da minha coleção está ligada ao cinema fantástico.
Hoje é muito fácil adquirir material, um filme está a um clique de distância, ou de um torrent. Antigamente, porém, conseguir um título era uma experiência árdua de garimpagem. E, dependendo do grau de raridade da obra, era necessário um bom tanto de persistência, além de bons contatos com outros colecionadores.
Lembro, por exemplo, de ter descoberto a obra de Alejandro Jodorowsky por meio de uma cópia pirata em VHS de A Montanha Sagrada, ripada de um Laserdisc japonês. Demorei quase 20 anos para conseguir uma cópia razoável do filme australiano Next of Kin. Naquela época, cada um tinha sua rede de contatos, que envolvia cinéfilos de todo o Brasil e até de outras partes do mundo, tudo movido à base de trocas pelo correio.
Apesar da facilidade dos downloads, acho que hoje é mais difícil depurar a enorme quantidade de informação. Os HDs lotados de filmes parecem tornar as obras mais descartáveis, isentas de certo valor agregado.
M.V.: Exatamente isto. Antes eu locava 3 clássicos para assistir em um final de semana (na era VHS). Hoje baixo 15 em um dia e não assisto nenhum deles.
3) "A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte de todos os medos é o medo do desconhecido", disse H.P. Lovecraft. O que despertou seu interesse pelo horror?
C.V.: A atração pelo gênero também foi semeada na infância. Cresci lendo revistas em quadrinhos de horror, como Spektro, Kripta e Calafrio, e assistindo aos filmes da produtora inglesa Hammer. Essas influências foram essenciais na formação do meu gosto pelo cinema fantástico.
O imaginário da minha infância era povoado por vampiros, lobisomens, múmias e outros monstros. Por isso, esse universo sempre me pareceu natural, assim como foi natural a transição de fã para realizador. O mágico e o assombroso sempre me fascinaram, especialmente na infância, quando estamos começando a descobrir o mundo. De certa forma, o contato com o cinema de horror ajudou a sublimar o medo de maneira positiva.
M.V.: Em sua opinião, porque o horror gera tantas discussões, contabiliza inúmeros seguidores e ao mesmo tempo, é tão deixado de lado em premiações como Globo de Ouro e Oscar?
C.V.: Apesar de ser um gênero com tendência a ser marginalizado, não acho que o cinema de horror seja tão menosprezado pelo establishment quanto costumamos imaginar. Em uma breve revisão histórica de premiações como o Oscar, podemos encontrar indicados importantes do gênero, como O Médico e o Monstro (1931), O Bebê de Rosemary (1968), O Exorcista (1973), Tubarão (1975), A Profecia (1976), O Silêncio dos Inocentes (1991) e Drácula de Bram Stoker (1992).
Mesmo no Brasil, recentemente tivemos filmes de horror fazendo sucesso em grandes festivais. As Boas Maneiras, de Marco Dutra e Juliana Rojas, venceu o Festival do Rio daquele ano com uma trama envolvendo lobisomens. No mesmo festival, tivemos o violento O Animal Cordial, de Gabriela Amaral, e O Nó do Diabo marcou presença no Festival de Brasília.
4) "A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos". Considerando a reflexão, há alguma experiência vivida no meio artístico que foi especialmente marcante?
C.V.: Como espectador, uma das experiências mais marcantes da minha vida foi uma sessão de Canibal Holocausto, em meados dos anos 1980. Certamente não era um filme indicado para uma criança, mas, pelo fato de o dono do cinema ser um amigo próximo da família, eu tinha acesso a obras impróprias para a minha idade. O filme causou um grande impacto em mim, foi meu primeiro contato com a crueldade cinematográfica extrema.
O choque inicial se transformou em fascinação, a ponto de me motivar a trabalhar com cinema. Trinta anos depois, encontrei o diretor Ruggero Deodato e pude lhe contar essa história pessoalmente.
Outros momentos que me marcaram foram ter trabalhado com Rodrigo Aragão em A Noite do Chupacabras e Mar Negro, onde desenvolvi personagens que acabaram abrindo portas para o meu trabalho como ator. Além disso, a seleção do meu curta Ne Pas Projeter para o Festival Internacional de Cinema Fantástico de Sitges, um dos mais renomados do gênero no mundo, foi a minha maior realização como diretor.
5) Com relação às suas preferências cinematográficas, há uma lista dos filmes de sua vida? Um Top 10 ou mesmo o filme mais importante?
C.V.: Acho uma tarefa quase impossível definir brevemente os filmes que considero importantes em minha vida. Mas, focando no cinema de gênero, arrisco uma lista com 13 títulos que me marcaram em algum período da minha formação como cinéfilo:
Três Homens em Conflito (The Good, the Bad and the Ugly / 1966), de Sergio Leone; À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), de José Mojica Marins; Os Inocentes (The Innocents / 1961), de Jack Clayton; Meu Ódio Será Tua Herança (The Wild Bunch / 1969), de Sam Peckinpah; Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead / 1978), de George A. Romero; Prelúdio para Matar (Profondo Rosso / 1975), de Dario Argento; Nosferatu (1922), de F.W. Murnau;
O Vampiro da Noite (Horror of Dracula / 1958), de Terence Fisher; Zumbi 2 – A Volta dos Mortos (Zombi 2 / 1979), de Lucio Fulci; Canibal Holocausto (Cannibal Holocaust / 1979), de Ruggero Deodato; O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chain Saw Massacre / 1974), de Tobe Hooper; Monty Python em Busca do Cálice Sagrado (Monty Python and the Holy Grail / 1975), de Terry Gilliam e Terry Jones; Os Selvagens da Noite (The Warriors / 1979), de Walter Hill.
6) Fale um pouco sobre os seus próximos projetos.
C.V.: No momento, estou me dedicando mais à literatura, focado na divulgação do meu livro de poesias O Diabo Belisca Meus Calcanhares, lançado este ano pela editora Artes & Ecos. Também tenho investido mais em meu trabalho como ator do que como diretor. Não tenho nenhum projeto de direção em vista no momento. Enquanto isso, comecei a desenvolver um roteiro chamado Rastro de Caixão.
Este ano, já podem me ver como ator no curta Reflexo, de Rodrigo Portela. E em 2018, estive nos longas A Noite Amarela, de Ramon Porto Mota, e Morto Não Fala, de Dennison Ramalho. Fora isso, sigo com meu trabalho como crítico de cinema no programa de rádio Zinematógrafo.
7) Ao olhar para sua trajetória, qual aprendizado considera mais valioso e gostaria de compartilhar?
C.V.: Sobreviver de arte, na maioria dos casos, exige uma vida de abnegação. Não sei se existem lições que nos preparem para isso, mas aprendi que, sem persistência e paixão, o caminho não nos leva muito longe.
M.V.: Obrigado amigo. Sucesso. A gente se vê os filmes.