Entrevista com Marcelo Ikeda

Marcelo Ikeda é realizador, curador, crítico e professor de cinema. Doutor em Comunicação pela UFPE, com estágio-doutoral na Universidade de Reading (Inglaterra), atua na área desde 1999. Dirigiu diversos curtas, como O homem que virou armário (2015), O brado retumbante (2017) e Impávido colosso (2018), além do longa Entre mim e eles (2013). Desenvolve também diários e cartas audiovisuais no projeto Cartas do Ceará.

Escreveu para variados veículos como ViaPolítica, Claquete, CurtaoCurta, Revista Etcetera além de manter o blog Cinecasulofilia desde 2004. É autor de livros como Cinema de garagem, Cinecasulofilia, Cinema brasileiro a partir da retomada e O cinema independente brasileiro contemporâneo em 50 filmes. Foi servidor da Ancine entre 2002 e 2010 e integrou comissões e júris de diversos editais e festivais nacionais e internacionais. Atua como curador em mostras e festivais, e desde 2010 é professor do curso de Cinema e Audiovisual da UFC, em Fortaleza. Também é membro da Abraccine e fundador da Accecine.


Vamos às 7 perguntas capitais:


1) É comum lembrarmos com carinho do início da nossa relação com o cinema. Os filmes ruins que nos marcaram, os cinemas frequentados (que hoje, provavelmente, estão fechados), as extintas locadoras de VHS e DVD que faziam parte do nosso cotidiano. Conte-nos um pouco de como é sua relação com a 7ª arte. Quando nasceu sua paixão pelo cinema? 

M.I.: Começou antes de eu nascer... (risos). Meus pais se conheceram em uma sala de cinema, durante uma sessão de Planeta dos Macacos. Quando eu tinha sete anos, um tio veio visitar a família. Ele assistia a filmes nada convencionais, e eu costumava vê-los com ele. Quando perguntava por que aqueles filmes eram considerados tão bons, ele respondia: “Você tem que descobrir por si mesmo. Cinema não se explica!”.

A partir daí, passei a ver mais filmes e a ler mais sobre cinema. Continuo tentando descobrir até hoje! Aos treze anos, vi um filme que mudou a minha vida: Não Amarás, do polonês Krzysztof Kieslowski. Assisti na televisão de casa, em uma fita VHS alugada na locadora da esquina. Foi como uma anunciação. A partir daquele momento, percebi que o cinema nunca mais deixaria de fazer parte da minha vida. De lá para cá, já vi esse filme umas vinte vezes.

2) Tyler Durden disse em Clube da Luta: "As coisas que você possui acabam possuindo você". Ser colecionador é algo que se encaixa neste conceito, já que você se torna escravo do colecionismo. Coleciona filmes, CDs ou algo relacionado à 7ª arte? 

M.I.: Tenho muitos filmes. Comecei com o VHS, depois vieram os DVDs, e hoje mantenho toda a minha filmoteca em dois HDs, duas caixinhas que quase cabem no bolso. Devo ter mais de dois mil filmes, fora os livros sobre cinema. Mas não me considero um “colecionador”. 

Sou apenas um arquivista: mantenho um acervo pessoal de cinema para consultas, pesquisas e aulas.  Não gosto de citar números, porque a paixão pelo cinema não se mede. Não acredito que alguém goste mais ou entenda mais de cinema pelo número de filmes que viu ou assiste.

3) Nossas vidas são definidas por oportunidades, mesmo as que perdemos", diria Benjamin Button em seu filme. O caminho até o eventual sucesso não é fácil, principalmente na arte. Além de ser fonte de renda, o que te motiva a estar neste meio cinematográfico? 

M.I.: O cinema faz parte da minha vida; não consigo viver sem ele. Não é apenas uma “fonte de renda”, é algo como o oxigênio, o que me mantém vivo. Por isso, não costumo pensar em como é “estar no meio cinematográfico”; isso aconteceu naturalmente, a partir do meu desejo de assistir a filmes e compartilhar com as pessoas essa paixão, de dividir tudo o que descobri por meio do cinema.

Tudo o que fiz desde então surgiu desse desejo ingênuo: o prazer de ver um filme. A busca pelo reconhecimento é uma grande armadilha. Não me preocupo com isso, preocupo-me apenas em fazer o que considero certo.

4) "A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos". Considerando a reflexão, há alguma experiência vivida no meio artístico que foi especialmente marcante?

M.I.: Nunca pensei sobre isso. Foram tantos eventos, tantas descobertas. Sou muito grato ao cinema por me possibilitar conhecer lugares e pessoas que jamais imaginei. O cinema proporciona encontros, e esses encontros são experiências marcantes, que me transformaram profundamente.

Uma delas foi a exibição de um dos meus curtas em um hospital psiquiátrico, o Pinel, no Rio de Janeiro, seguida de uma conversa com os pacientes. Foi uma experiência riquíssima. Outra vivência que me transformou profundamente foi assistir ao filme Sátántangó, de Béla Tarr, em uma sala de cinema, mais de oito horas ininterruptas de duração. Quando saí do cinema, o mundo parecia outro.

Sou ainda apaixonado por ver filmes em sala de cinema, que continuo considerando o local mais mágico para se assistir a um filme.

M.V.: Até os filmes ruins, quando assistidos no cinema,  se apresentam mais interessantes.

5) Com relação às suas preferências cinematográficas, há uma lista dos filmes de sua vida? Um Top 10 ou mesmo o filme mais importante? 

M.I.: A cada semana, essa lista se modifica, então vou fazer listas e sub-listas (risos):

1. Filmes que são meus maiores pilares.  São as vigas-mestras de como eu percebo o cinema:

Walden, de Jonas Mekas; Jeanne Dielman, de Chantal Akerman; Cedo Demais, Tarde Demais, de Jean-Marie Straub e Danielle Huillet; Gertrud, de Carl Th. Dreyer; Mouchette, de Robert Bresson; Era uma Vez em Tóquio, de Yasujiro Ozu; Ladrões de Bicicletas, de Vittorio De Sica.

Diretores que mais me marcaram:

Jonas Mekas; Chantal Akerman; Jean-Marie Straub e Danielle Huillet; Yasujiro Ozu; Robert Bresson; Carl Dreyer.

Outros diretores marcantes: Michelangelo Antonioni; Ozualdo Candeias.

2. Outros filmes em grande estima na minha memória pessoal:

A Cor da Romã, de Sergei Paradjanov; Aopção, de Ozualdo Candeias; O Sol do Marmeleiro, de Victor Erice; Café Lumière, de Hou Hsiao Hsien; Memórias de um Estrangulador de Loiras, de Julio Bressane; Nostalgia, de Andrei Tarkowski; La Vallée Close, de Jean-Claude Rousseau; One Week, de Buster Keaton (curta); Corrida sem Fim, de Monte Hellman; Vinte Cigarros, de James Benning; A Aventura, de Michelangelo Antonioni; A Doce Vida, de Federico Fellini; Terra, de Alexander Dovzhenko; Persona, de Ingmar Bergman; A Mulher de Areia, de Hiroshi Teshigahara; No Decurso do Tempo, de Wim Wenders.

3. Filmes que talvez nem sejam tão bons, mas me marcaram profundamente:

Não Amarás, de Krzysztof Kieslowski; Estética da Solidão, dos Irmãos Pretti; Silver City, de Wim Wenders (curta); Eu Transo, Ela Transa, de Pedro Camargo; A Loja da Esquina, de Ernst Lubitsch; O Anjo Azul, de Joseph Von Sternberg; A Última Gargalhada, de F.W. Murnau; O Último Americano Virgem, de Boaz Davidson; Le Trou / A um Passo da Liberdade, de Jacques Becker; Kes, de Ken Loach; Roleta Chinesa, de Rainer Werner Fassbinder; Rocco: Animal Trainer, de Rocco Siffredi.

4. Diretores de quem gostaria de citar mais de um filme:

Crônica de Anna Magdalena Bach, de Jean-Marie Straub; As I Was Moving Ahead..., de Jonas Mekas; A Dupla Vida de Veronique, de Krzysztof Kieslowski; News from Home, de Chantal Akerman.

5. Cinema contemporâneo que me marcou profundamente:

Os Mortos, de Lisandro Alonso; Rosetta, dos Irmãos Dardenne; Cães Errantes, de Tsai Ming-liang; Japón, de Carlos Reygadas; O Que Se Move, de Caetano Gotardo; A Garota de Lugar Nenhum, de Jean-Claude Brisseau; (O primeiro episódio de) Cinco, de Abbas Kiarostami; Plataforma, de Jia Zhangke; Eureka, de Shinji Aoyama; Esse Amor que nos Consome, de Allan Ribeiro.

M.V.: Interessantes suas listas. Elas fogem totalmente do senso comum, de nomear filmes como Poderoso Chefão, 2001, entre outros...

6) Fale um pouco sobre os seus próximos projetos. 

M.I.: Tenho vários projetos, mostras de cinema, livros, filmes. Mas não gosto de falar sobre o que pretendo fazer, porque não sei se, de fato, conseguirei realizá-los, nem como isso acontecerá. Provavelmente não conseguirei fazer nem 10% do que gostaria ou sonho em realizar.

Mas isso não me desanima nem me desmotiva, porque o pouco que venho conseguindo concretizar me orgulha. Parece-me algo digno, que contribui não apenas para mim, mas que planta uma semente, mesmo que frágil, mesmo que eu não saiba exatamente para onde ela vai.

7) Ao olhar para sua trajetória, qual aprendizado considera mais valioso e gostaria de compartilhar?

M.I.: Não gosto muito dessa ideia de “compartilhar aprendizados”. Não quero servir de exemplo para ninguém. Minha vida foi apenas a forma que encontrei de vivê-la. O que venho procurando fazer, já há alguns anos, é exercer uma militância a favor da arte, da cultura, especificamente do cinema, como forma de estar no mundo.

Muitas vezes, vivemos de forma tão apressada e corrida que mal temos tempo de contemplar o mundo à nossa volta, de refletir sobre nossa existência, de ouvir o canto dos pássaros, o som do vento balançando a copa das árvores.  O papel do cinema é nos fazer perceber tudo isso. Acredito que essa é justamente a função da arte: nos fazer ver o mundo como uma experiência sensível, ampliar os caminhos da nossa sensibilidade, nos permitir viver outras experiências, e nos aceitar como verdadeiramente somos. Aceitar a si mesmo é um desafio. Aceitar o outro como ele é, talvez seja ainda mais.

O verdadeiro desafio é sermos nós mesmos, e não aquilo que querem que sejamos (nossa família, nossos chefes etc.). Para isso, é fundamental ter acesso à diversidade. Entrar em contato com outras culturas, com outros modos de ser, perceber que há pessoas que pensam e vivem de maneira diferente da nossa, e que isso não as torna melhores nem piores.

Trata-se de respeitar e conviver com a diferença. Ouvir. Respirar. Entender que não precisamos torcer pelo mesmo time de futebol, ouvir as mesmas músicas, ver os mesmos filmes, ter a mesma orientação sexual ou seguir a mesma religião. Podemos e devemos ter o direito de escolha. Podemos viver e pensar de forma autêntica, sem sermos meros zumbis.

É preciso entender que o mundo é um processo histórico, uma construção baseada nos olhares dos “vencedores”, que muitas vezes esmagam os “vencidos”. Que possamos sair da nossa zona de conforto e nos abrir a outras experiências. E compreender que a liberdade não é viver como quisermos a qualquer custo, mas também reconhecer nossos próprios limites e os limites do outro. Ser como somos, sem ferir o outro.

Acredito (talvez romanticamente) que o cinema pode contribuir com esse processo de luta, com esse engajamento humano por uma outra forma de existência. Essa é a minha utopia.

M.V.: Obrigado. A gente se vê nos festivais. 




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