Entrevista com Lucas Paz
Lucas Paz (Lucas Freitas Peixoto Paz), nascido em 23 de fevereiro de 1989 em Fortaleza (CE), é diretor, produtor e ator com carreira internacional no cinema e teatro. Premiado por filmes como Under Water: Dive Deep, Match (2016), Julia (2016) e Faithful (2017), acumula mais de 100 trabalhos e mais de 20 prêmios ao redor do mundo.
É mestre em Cinema pela New York Film Academy e bacharel em Direção Teatral pela USP. Em 25 anos de carreira, recebeu comendas da Califórnia e da cidade de Los Angeles por sua contribuição artística. É autor de livros e artigos sobre poesia, performance e curtas-metragens, além de membro da Academia Limoeirense de Letras.
Destacou-se também na direção de espetáculos como Moacir: Filhos da Dor (2012), reconhecido pelo Governo de São Paulo. Atuou como professor universitário, diretor artístico de ópera na Azusa Pacific University e ministrou o primeiro curso de cinema do Porto Iracema das Artes em Crato (CE).
Vamos às 7 perguntas capitais:
1) É comum lembrarmos com carinho do início da nossa relação com o cinema. Os filmes ruins que nos marcaram, os cinemas frequentados (que hoje, provavelmente, estão fechados), as extintas locadoras de VHS e DVD que faziam parte do nosso cotidiano. Conte-nos um pouco de como é sua relação com a 7ª arte. Quando nasceu sua paixão pelo cinema?
L.P.: Minha infância inteira foi muito permeada, além de museus e teatro. Eu era uma criança que gostava muito de frequentar e ficar por horas no museu. Eu também exercia o teatro desde os 5 anos de idade, atuando em peças de teatro por Fortaleza. O cinema, para mim, era uma relação de sala. Eu ia ao Arco-íris, se não me engano, no shopping Aldeota, ia ao cinema do Del Paseo, aos cinemas antigos do Iguatemi... Houve uma vez em que assisti a 3 filmes seguidos num mesmo dia no Iguatemi. Na praça velha de alimentação, na praça nova, alternado: um filme de um lado, um filme do outro e voltei para o primeiro (tudo isto em Fortaleza).
Eu também tinha uma relação forte com as locadoras de VHS. Eu tinha a prática constante, aliás, semanal, de pegar vários títulos e, muitas vezes, criança gosta de repetir os filmes, então eu repetia muito os mesmos filmes. E, a partir do momento em que ganhei uma tevê de 14 polegadas para colocar no meu quarto, comecei a assistir aos filmes da Disney, e eles embalavam minhas noites antes de dormir e antes da oração com minha mãe (eu tinha 5 anos), o que era religioso. Todo dia eu fazia. Mas, depois de deitar, minha cabeça não parava, pois eu pensava muito, tinha uma imaginação muito aflorada. Quando o mundo silenciava, minha cabeça começava a falar comigo. Depois que minha mãe saía do quarto, eu voltava a ligar a TV para conseguir dormir. Então, eram os filmes que me colocavam para dormir.
Depois, isso é substituído por aquela tela azul da televisão com o timer, para que eu conseguisse ir acalmando a mente até pegar no sono. Aí começava a criar outras em sonho. É interessante que isso vai ter uma relação com um fato futuro bem curioso. O meu último filme, o Erase Me, veio para mim todo em sonho, cena a cena decupada. Eu acordei no meio da noite e escrevi o filme inteiro, por cena, por enquadramento e por diálogo. Primeiro destrinchei-o nas cenas que eu vi, e seguiram-se os diálogos. Então, até hoje, para mim, a linguagem audiovisual acontece muito em sonho.
Para falar de filmes ruins ou filmes que eu considero bons, mas que alguém considere ruins por conta de alguma falha técnica — pois não voltei a assisti-los nos dias de hoje —, eu sempre gostei muito dos 3 Ninjas – Uma aventura radical. Era um filme que eu repeti muitas vezes e, naquela época, existiam as locadoras de videogames nos bairros, e eu adorava os jogos de lutas. Os 3 Ninjas eram a realização de um sonho na tela, pois eram 3 crianças combatendo inimigos através da arte marcial. E eles colocavam máscaras com cores fortes que me chamavam muito a atenção.
Eu também gostava muito do Menino Maluquinho. Recentemente, o crítico Daniel Herculano me pediu uma lista de filmes brasileiros, e eu fiz questão de incluir o filme dentre tantos outros filmes de destaque nacional, porque, para mim, o cinema tem muito a ver com emoção, com registro, com a memória forte que marca a gente, e esse filme foi um desses casos, como Os 3 Ninjas, que eu vivia alugando na locadora lá perto de casa.
Eu fui crescendo, e meu pai me dava dinheiro para o lanche, que, na maioria das vezes, não era suficiente para comprar o lanche. Às vezes, ele me dava 2 reais, e o salgado e o suco eram mais que isso. Então, eu guardava esse dinheiro, ficando aquele tempo do recreio sem comer, e juntava para comprar meus próprios DVDs. Comprei vários e algumas séries de televisão, e ficava sempre muito orgulhoso dessa capacidade de juntar e investir em algo que me fascinava. Esses DVDs ainda existem lá na minha casa, inclusive os VHS também. Eu nunca os desfiz, eles trazem esse momento de nostalgia, apesar do streaming, das plataformas de compras online.
2) Com relação às suas preferências cinematográficas, há uma lista dos filmes da sua vida? Um Top 10 ou, mesmo, o filme mais importante?
L.P.: O filme ou os filmes mais importantes da minha vida é uma pergunta difícil porque depende da época, não é? A cada ano, a cada 5 anos ou a cada década, parece formar ou imprimir em nós enredos que outras pessoas conceberam, mas que parecem ser histórias da nossa vida...
M.V.: Exatamente, eu sempre digo que o filme é a extensão de suas experiências, vivências e, dependendo da época, ele pode causar um impacto profundo, positivo ou negativo.
L.P.: Isso. Eu recentemente fiz uma lista dos 25 filmes para o clube de cinema do Daniel Herculano (está disponível online para quem quiser procurar), e se trata de uma lista de filmes nacionais. Ainda muito levado pelo que eu te falei, que está ligado à catarse, à epifania, à emoção. Eu aprendi no meu mestrado com o professor de roteiro que a experiência do cinema não faz sentido se não tiver um emotional core, que é um pulsar de emoção que justifique todos os três atos, que nada mais é do que você se identificar com o herói, poder vibrar com ele, se decepcionar com ele e carregar essa lição de vida que faz com que a gente se sinta descobridor das charadas que a "vida" vai reservar para aquele personagem e se identificar com os momentos que ele vive.
Por esse motivo, sempre que fazem essa pergunta, eu continuo respondendo a mesma coisa: os meus dois filmes favoritos são Rei Leão e Forrest Gump.
M.V.: Não por coincidência, ambos de 1994.
L.P.: Eu acho que os dois trazem questões que são para uma vida inteira, que é entender o ciclo da vida. Cada um, ao seu modo, nos ensina valores de vida. Os personagens principais estão nessa jornada de crescimento, descoberta e de desbravar o desconhecido. E, através desse acertar e errar, ampliar o seu limite de ser. O Rei Leão, que assisti aos 5 anos, eu revia todas as noites, e me assustava na cena inicial do ratinho e da pata do Scar acertando ele, chorava com a morte do Mufasa, vibrava com a adolescência do Simba e a justiça que foi feita no final.
Da mesma forma, o Forrest Gump, uma pessoa fadada ao fracasso, considerada frágil, fora do normal e diferente, mas, através dos valores que ele herdou na educação da mãe, pela autoestima desenvolvida naquele seio familiar, teve a possibilidade de ganhar o mundo sem medo do desconhecido e fazer a própria história.
Ambos os filmes me inspiram muito até hoje. E, para mim, Forrest Gump é uma lição de narrativa que eu mesmo me desafio quando escrevo um roteiro. Uma história que tinha tudo para ser simples e não cair no gosto das pessoas foi uma aposta do Zemeckis que deu muito certo. Frases célebres viraram produtos de marketing que até hoje rendem. Virou até rede de restaurantes. É um filme muito inspirador.
Eu poderia citar também o filme Na Natureza Selvagem, que tem uma pegada parecida de autodescobrimento, explorar limites, e Batman – O Cavaleiro das Trevas, que dá um show de roteiro. Todas as falas do Coringa marcam muito para mim a capacidade do roteirista de colocar na voz do vilão a voz da sabedoria, que mostra para a sociedade as próprias fragilidades e o que ela gera com isso. E foi uma semente do Coringa que hoje todos estão celebrando, com o Joaquin Phoenix.
3) Como analisa o crescimento das produções nacionais, que aliam principalmente qualidade e credibilidade, e como se vê neste cenário?
L.P.: Eu creio que, com ou sem financiamento, o Brasil, ao longo da sua história no cinema, sempre usou da crise, usou da dificuldade como sua mola propulsora e até hoje a gente vê filmes do cinema brasileiro desde o Cinema Novo para cá. Eu sou de 89, então, vão me perdoando a filmografia limitada, mas é o que eu posso compartilhar com vocês: que sempre a gente fez da dificuldade a nossa força, que isso seja de inspiração, mas que isso seja de propulsão para alçar melhores e maiores voos, o que significa lutar cada vez mais por uma profissionalização, lutar por um respeito da profissão, não só entre os pares, mas entre a sociedade, entender que o cinema e a indústria criativa geram muito retorno financeiro, e que esse retorno vem por uma jornada louca de trabalho de 6 dias para 1 dia de folga, de 12 horas diárias de trabalho.
É um processo longo desde a pré-produção, do desenvolvimento, eu diria, até a pós-produção e a distribuição, que muitas vezes as pessoas não têm noção de que tudo que a circunda, toda forma de conteúdo audiovisual, leva um tempo muito longo e envolve muitas pessoas, então gera uma quantidade de emprego absurda. E eu vejo que o cinema brasileiro e a televisão, cada vez mais, têm buscado uma qualidade, não só da forma, mas do conteúdo. Cada vez mais cinemática a imagem que a gente vê nas séries. E cada vez mais as pessoas estão buscando formação. As escolas de formação públicas ou privadas têm possibilitado essa experiência junto também com o barateamento dos aparatos técnicos.
O Brasil, como você mesmo mencionou, está tendo a possibilidade de cada vez mais aprofundar na qualidade e credibilidade de suas obras, por isso, porque usou da sua história, da sua força, da sua crise e dos seus temas reais do contexto político, do contexto social, valeu-se disso, tem valido de sua cultura, para gerar as suas histórias, os seus enredos, e a gente se identifica e consegue que essas histórias muito particulares também toquem pessoas de terras estrangeiras, terras alheias.
Eu acho que tem determinados títulos óbvios que caíram no gosto nacional e estrangeiro e, para mim, fica como destaque muito a maestria de obras como “Que horas ela volta”, que reúnem um time de atores muito capacitados, uma qualidade técnica, uma maestria da fotografia, quase matemática mesmo da forma como foi concebida, e o conteúdo, o enredo que é um retrato; creio que o Brasil inteiro se identificou com o que está retratado ali na tela, ou na figura do patrão, ou na figura do empregado.
Então, acho que tem uma leva de filmes brasileiros que estão sendo atualmente produzidos que fazem, sim, a gente cada vez mais vestir a camisa do cinema brasileiro, querer que outras pessoas assistam, querer aumentar o nosso circuito, proteger as nossas obras de modo que realmente exista um espaço maior dedicado ao cinema nacional nas salas ao redor do Brasil, para que não aconteçam absurdos como quase 98% das salas e das exibições ficarem delegadas a um só título, como foi o que aconteceu com o “Vingadores”, que as questões comerciais, que os distribuidores e que as salas de cinema mesmo vejam e entendam, cada vez mais, a força do conteúdo que está sendo feito aqui.
Isso me impulsiona, para onde quer que eu esteja, ou nos Estados Unidos ou no Brasil, que os meus enredos também sejam muito verdadeiros, a minha experiência, ao meu repertório. Eu acho que quanto mais a gente fala do que a gente entende ou do que nos inquieta, assim a gente consegue dialogar com as outras pessoas, a gente consegue travar essa rede de questionamento e de emoção que eu falava agora há pouco.
Eu creio que o meu argumento é tão prova disso, dessa capacidade de falar do que se entende bem e de lutar por fazer com maestria, com o melhor que se pode dar, com propriedade e com qualidade, quando se tem essas condições, quando se entende do que se quer falar. A prova disso são produções cearenses recentes que eu gostaria de destacar, de cineastas estreantes, debutantes em seus primeiros longas, e que deram um show internacionalmente e também no Brasil, que foram Allan Deberton com “Pacarrete” e Armando Praça com “Greta”. Eu acho que eles dão um banho de cinema, para cineastas já mais tarimbados, como cineastas que estão começando a carreira agora também, provam que, quando a gente busca um assunto que nos é caro, busca os meios de realizar isso, o resultado não pode ser diferente. Tenho muito orgulho dessa produção recente cearense que tem mostrado aí a que veio e que, para mim, vive um momento áureo mesmo.
Um cineasta que me intriga muito por saber escolher muito bem o que falar e viver esses ciclos temporais de estudo de um projeto, de aperfeiçoamento até que esse projeto venha a público, ele sempre me intriga bastante. As escolhas dele, para mim, são sempre escolhas muito acertadas. Eu ainda não passei por uma experiência negativa com o que vi. Posso até não ter visto algum trabalho, mas com o que vi do Fernando Meirelles — vou destacar aqui “Ensaio sobre a cegueira” e “Dois Papas” — ele escolheu temáticas muito interessantes, já canonizadas, super relevantes de se discutirem, de autores fortes ou de conteúdos muito fortes, que, para mim, são sucesso e inspiração.
Então, queria deixar destacado aqui o meu salve sempre ao Fernando Meirelles, que entendeu a importância não só do conteúdo, mas de como viabilizá-lo, como veiculá-lo, e ensina para a gente também que a arte é mercado, que a arte é produto e que ela tem o seu valor. Ela gera valores tanto a nível mercadológico quanto a nível social mesmo. Ela é uma forma de fazer, de perpetuar a cultura, de criar cultura, de transformar a cultura.
4) "A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos." Considerando a reflexão, há alguma experiência vivida no meio artístico que foi especialmente marcante?
L.P.: Houve algumas histórias que hoje talvez a gente considere tragicômicas, porque hoje a gente pode rir, mas na época era só tristeza. Eu vou relatar algumas. No Under Water: Dive Deep (2016), que é sobre uma mãe que perde o filho afogado no mar, e o que a gente acompanha é a trajetória de recuperar-se dessa perda, ela vai se encontrar com personagens surreais, meio assim Alice no País das Maravilhas, Pequeno Príncipe, que tem essa vibe assim. No filme, eram cinco diárias, e, das cinco, quatro eram na praia.
Você pode imaginar que a nossa produtora tinha uma preocupação enorme de que esse pessoal, trabalhando 12 horas diárias, não se queimasse todo, né! Passava com protetor solar anunciando, só faltava o megafone para ela, para toda hora ter certeza de que estava todo mundo protegido. Bem, logo no primeiro dia, um dos nossos membros da equipe, que era o gordinho chinês, não quis passar. E o que aconteceu no dia seguinte foi que ele quase ficou impossibilitado de ir trabalhar. Ele teve uma reação que a gente nunca tinha visto antes, bem atípica com relação a queimaduras. Ele queimou a nuca dele a ponto de formar uma bolha enorme.
Outras histórias do mesmo filme: eu convidei os produtores para o projeto. Apesar de ser um curta, nós tínhamos quatro produtores, acredite! Não foi falta de tempo, de organização, não. A gente vai aprendendo em quem confiar à medida que vai montando essa nossa equipe, trabalhando com as pessoas, ganhando essa experiência. Pois bem, a um dos produtores cabia a tarefa da locação, e ela era a única certeza logo desde o começo do filme. Era uma praia chamada Pirate Cove, CA, e eu sabia que queria essa praia para a gente gravar. Pois bem, o produtor achou que havia conseguido todas as autorizações para gravar lá, mas não conseguiu fechar.
Chegou uma ou duas semanas antes de a gente gravar, e nós tínhamos tudo, mas não tínhamos a locação. Eu e minha co-produtora, que nesse projeto era também minha primeira assistente de direção, saímos dirigindo a costa californiana inteira atrás de uma praia que estivesse disponível. A gente chegou até a buscar praias privadas de uma colônia portuguesa, falamos com eles.
A Sophy Taylor, no caso, ligou, falou e depois desligou e disse para mim: “Olha, Lucas, não vai dar certo, não vai ter jeito, eles não quiseram.” Eu olhei assim para ela e disse: "Sophy, a gente rodou quase todas as praias, a gente não tem mais opção para 'não'. Peraí, deixa eu ligar e falar com a mulher.” “Mas, Lucas, eu acabei de ouvir um não.” A Sophy, como uma boa britânica, para ela é preto no preto, branco no branco. E eu disse assim: “Sophy, a gente vai ter que tentar de novo.” Peguei e liguei para a mulher, expliquei a história toda do processo do filme, desde o começo, de como nós estávamos rodando toda a costa litorânea, e ela se propôs a marcar um horário para que a gente fosse lá conhecer o lugar.
Mas, infelizmente, não se adequou ao que a gente buscava, e a gente acabou encontrando uma outra praia que calhou muito bem para a gravação do nosso filme. No último dia dessa mesma gravação, ficamos eu, o diretor de fotografia, uma assistente de produção e o fotógrafo. Nós estávamos lá, todo mundo exausto, todo mundo já tinha ido embora, lágrimas, homenagens, todo mundo feliz.
Pois bem, a gente está lá, aproveitando a brisa. Na hora de ir embora, o carro não ligou. A gente tinha o caminhão com os equipamentos e um carro de passeio. O carro travou a direção. Pois não é que a gente conseguiu sair dessa situação através de um tutorial do YouTube? Cineastas apelando ao YouTube! E, assim, a gente descobriu que tinha travado a direção, que é uma medida de proteção do modelo do carro (risos).
Mais uma desse filme: nós tínhamos originalmente escolhido um ator anão, uma pessoa pequena — não sei como fala aqui no Brasil. Lá nos Estados Unidos, a gente não pode mais dizer anão, a gente tem que dizer “Little person". É muito difícil montar o elenco, buscar talentos que se enquadrem num papel bem limitado, e, dos três ou quatro anões que nós vimos, um se enquadrava para o papel. Fizemos ensaios, fomos à praia. Ele tinha uma condição de saúde na coluna.
Eu carreguei esse homem nos braços — pesado — subindo e descendo pedra, com a mochila nas costas, uma cadeira atada na mochila e carregando tudo isso. Chegamos, fizemos os ensaios, foi maravilhoso, eu tinha certeza de que ele era a pessoa ideal para o papel. Pois bem, depois, quando eu chego em casa, recebo um e-mail de que ele não vai poder mais fazer. Eu fiquei sem chão. Fui, mandei carta, mas o que acontece é que ele realmente não poderia.
O que aconteceu é que, um ano antes, eu participei de um longa-metragem chamado Restored Me, e eu estava lá só como assistente de produção. E um dos atores que estava no set era o Pepe Serna, um ator hollywoodiano de origem mexicana que já fez grandes trabalhos com Al Pacino, Matt Damon — ele fez Pequena Grande Vida, fez Scarface — e o resultado é que eu procurei o contato dele através do IMDB-Pro. Achei o contato do agente, mandei e-mail, mandei roteiro. Queria ele originalmente para o Blind Rat, que é um outro personagem, um mendigo cego, e ele não ia ter as datas.
Quando aconteceu essa questão da desistência do outro ator, eu o contatei novamente. A essa altura, nós já estávamos trocando telefonemas pessoais. O agente havia passado esse contato, dizendo: “Olha! Tem uma outra data, tem um outro papel, acho que você vai gostar muito. Tem a ver com circo, tem a ver com improviso, com mágico, com trapacear, vamos?” E ele foi, às nove da noite, no White Point Beach, numa sexta-feira. Ainda era claro pela posição do sol e clima de lá. Mas ensaiamos a esse horário, foi o único ensaio em que batemos texto, improvisamos, e, assim, ele eternizou a figura do Little Big Me... no meu primeiro curta-metragem.
Uma história não muito feliz desse filme é que a atriz principal, Arden Kelly, perdeu o pai, que faleceu uma semana antes da gravação do filme. Então foi uma gravação assim, que me pôs muito à prova. Eu, na verdade, consegui financiamento coletivo para a produção inteira do filme, no meu primeiro projeto. Ultrapassamos a meta estabelecida, mas tiveram esses percalços aí, que eu acho que vão formando, vão aperfeiçoando, vão dando experiência ao cineasta. Aí a gente aprende a lidar com situações as mais diversas — de psicólogo a produtor também —, mesmo no papel de diretor. Tendo que fazer malabarismos às vezes.
No Um Toque de Aurora, nós tínhamos também uma equipe bastante diversa. Na natureza de nossos projetos, a gente sempre trabalha com pessoas das mais variadas partes do mundo. Aqui nós tínhamos um diretor de fotografia indiano que já gravou projetos como As Aventuras de Pi, Jurassic World — ele fazia parte dos efeitos visuais. Tínhamos a maquiadora de Teen Wolf, de Jogos Vorazes, do Meu Amigo Hindu. Tínhamos uma série de pessoas vinculadas ao projeto, que tinha uma determinada projeção nacional e internacional.
A Thaila Ayala é a nossa protagonista, e o Al Danuzio também já ganhou Kikito em Gramado por Aquarela, dirigido e atuado por ele. E a Thaila Ayala nós já conhecíamos da televisão e do cinema, e mesmo numa incursão de cinema internacional. Assim, ela deu vida à nossa personagem Sara. Os dois personagens, nesse filme, são cegos.
Bem, para o convite da Tayla foi curioso, eu consegui o contato direto dela, através de uma colega da indústria, eu mandei um e-mail fazendo o convite para Tayla e ela foi super educada, se interessou muito pelo projeto, nós marcamos nossa reunião. Pois bem, assim que o projeto realmente falava da privação da visão, nós tivemos nossa apresentação como de costume, mostrando os valores do projeto, a contrapartida social, a equipe forte que nós tínhamos reunido, e, parte dessa nossa reunião, nós vendamos a Tayla e fizemos uma dinâmica de cheiros, toques, diferentes sensações, uma vez que desprovida da visão, terminamos com essa caixa, esse presente para ela, que acho foi a cereja do bolo, foi o que determinou mesmo o sim dela no nosso projeto.
Uma caixa cheia de Nissin Miojo, de todos os tipos e sabores que você pode imaginar. Há quem diga que Nissin Miojo é uma das paixões de Tayla Alaya, e isso foi o nosso arremate naquele dia de reunião. Nós tivemos um diretor indiano, e você imagina, como é que um diretor indiano dirigiu um filme falado em português, pois bem, até hoje nós estamos tentando descobrir como foi tal feito, porque realmente o ator idealizador do projeto confiava na direção dele, e acho que fez bem. O filme é super sensível e toca bem os públicos que têm assistido.
Aconteceu um fato curioso em outro projeto, nem tanto engraçado, mas que ficou aí para os autos. “Júlia” é um projeto com a Sabrina Percario, que trata-se da perda da mãe dela e o filme se relaciona com o sonho, com o sentir falta da presença da mãe, em que eu tive o prazer de produzir. Nesse mesmo período eu fui convidado por outro ator para dirigir o trabalho dele, um curta de terror, até então um gênero que eu não havia explorado.
E, dando enfoque à minha carreira de direção, que para mim vem prioritariamente ao produtor que eu sou; eu conversei com a Sabrina e expliquei: "Olha, muito feliz em estar produzindo esse trabalho, um trabalho super sensível, super delicado e pessoal seu, mas como fazemos? Tenho esse convite aqui para dirigir, e dirigir um terror é uma oportunidade que eu tenho de expandir a minha janela de trabalho." Assim conversamos, e o que ocorreu foi: eu consegui fazer uma ótima pré-produção para “Júlia”, deixei todos os aspectos, toda a logística de filmagem bem encaminhada, era um curta-metragem, nós fizemos toda a parte de autorizações, de logística de estacionamento, de alimentação, de contratar equipe, fazer o casting dos atores, conseguimos felicidade no projeto.
No caso do projeto que eu dirigi, ele se dava à noite, então eu conseguia espaços, janelas de tempo, para poder me comunicar constantemente com a produção de “Júlia” para saber se tudo corria bem, e assim eu consegui matar dois coelhos com uma cajadada só. No “Erase Me”, além da conquista, em uma fila de show do Caetano Veloso e do Gilberto Gil comemorando cinquenta anos da carreira deles, somando a carreira de um com a do outro, conheci Talma de Freitas, uma beldade da televisão brasileira que canta super bem, e que até então eu desconhecia.
Foi um prazer trabalhar com ela no “Erase Me”, que é esse projeto de uma transgênero, que está buscando o pai que a abandonou na infância. Para esse projeto, eu consegui obras exclusivas da artista visual Érica Harsh, residente em Nova York. Ela é mexicana e já teve obras do trabalho dela que apareceram no filme com Diego Luna e Alice Braga. Eu havia visto uma exposição dela em São Paulo em 2008. Olha, para você ver como as coisas nessa mente dos criadores vão e vêm.
Quando eu fui fazer o filme, voltou aquela imagem na minha cabeça, e eu fiquei martelando de quem era, como encontrar. Consegui o contato dela, contactei, expliquei do que era o projeto, pois eu tive o prazer de que ela me mandasse quatro de suas esculturas originais, de uma série chamada “Inmagus”. E também ela me liberou o direito de imprimir algumas ilustrações, algumas imagens dela em forma de ilustração em escala real, que depois obviamente eu tinha que devolver ou destruir as peças reproduzidas, teve esse barato aí de conseguir essa conquista para esse projeto.
Também no “Erase Me”, foi um projeto que desafiou bastante os nossos atores principais. Eles tiveram aula de strip burlesque, tiveram aula de pole dance, tiveram aula de combate, porque tinha cenas que eram necessárias o combate físico. E teve um desses dias, a gente tinha uma diária que desde o começo sabíamos que iria ser muito puxada, a gente abriu essa exceção, pôs em reunião a discussão com relação a esse dia que nós precisaríamos gravar a cena da boate e do estupro.
Então, foi um dia de quatorze horas, super cansativo para todo mundo. E nós tivemos o João Vitor Salles Damasceno num verdadeiro desafio físico e mental, porquê ele teve que, repetidas vezes, repetidos takes, fazer sequências de dança, pular nesse mastro, fazer coreografia e, ao final do dia, o coitado ainda ia ser estuprado. Claro que tudo tecnicamente trabalhado justamente com um coordenador de dublê. E foi assim, realmente testou limites do ator e o resultado é de bastante agrado, a gente tinha uma referência do filme “Irreversível” do Gaspar Noé, e creio que o nosso resultado me satisfaz muito quanto diretor.
O nosso diretor de fotografia e amigo meu querido, Nelson Flores, salvadorenho, residente e naturalizado americano, certa vez eu disse para ele: “Olha, seis diárias, câmera na mão, já sabia que a linguagem do filme seria de câmera na mão. Eu disse para ele: "Olha, tô pensando em alugar uma base para você não morrer aí, tendo que carregar essa câmera durante seis diárias direto.” Ele: “Não, Lucas, imagina! Eu aguento.”
Eu, bem tarimbado nesse tipo de coisa, já vi de tudo um pouco nessa vida, desde a época do teatro. Eu disse: “Esse aí não aguenta um dia”, doze horas segurando uma câmera de muitos quilos, uma "Red Dragon". Digo, eu vou alugar de qualquer forma, ele diz: “Não precisa” e eu disse: “Eu alugo, você pode até nem usar, mas a gente vai ter à disposição.” Foi dito e feito, primeiro dia de set, menos da metade do dia ele já estava com a base de câmera, não aguentou não, (risos)! Teve que usar.
No final das contas, este projeto é muito importante para mim, tive muita felicidade de ter conseguido realizar, com temática interessante, relevante, socialmente falando, com pessoas super interessantes, e ainda com artistas de reconhecimento nacional e internacional envolvidos.
Meu cinematógrafo encerra os trabalhos e ele diz: “Lucas... 'Let's get shaved'?” (que significa barbear-se). E eu fiquei pensando: "Esse menino não tem o que inventar a essa altura não?" E eu: “Meu Deus, nunca fui me 'barbear' com ninguém assim”, ele é um amigo muito, muito especial, mas eu não estava entendendo a vibe. Pois esse meu querido amigo me levou a um estabelecimento que, quando eu cheguei lá, o que era esse tal "get shaved"? Era nossa famosa raspadinha, nos enchemos de raspadinhas... (risos).
Nesse trabalho chamado “Embrace”, que foi concebido pouco tempo depois da eleição do Trump lá nos Estados Unidos, a gente montou um grupo de criação em resposta a isso, e como um meio de “motor” de criação em que nos encontraríamos semanalmente para fazer obras audiovisuais, primeiro partindo desse gatilho, depois nós iríamos onde iria dar.
Bem, escrevi um poema chamado “Bridge”, para contrapor a parede que ele queria construir, e o nome da peça chamava-se “Embrace”, eu não só havia concebido como dirigi e também fazia parte como ator. Pois bem, era uma peça que misturava bastante elementos de videoclipe, de performance e de teatro, e nós tínhamos um homem negro, uma mulher asiática trans, uma mulher indígena nativa e uma drag queen, todos no set. O que acontece é que eu, naquele momento, com meu cabelo longo, loiro que eu tinha, crescido ao longo de cinco anos, todo no babyliss, todo nos cachos, com lentes de olhos azuis, estava ali, ia ser submetido a uma série de materiais um pouco não convencionais, por assim dizer.
O que acontece é que eles cortam o meu cabelo em cena, vão aos poucos me despindo em cena, esse “homem branco” que acha que sabe de tudo, precisa ali mesmo renascer e abraçar as diferenças “Embrace”. O que acontece é que em cada personagem jogam um elemento em cima dele e assim, o primeiro elemento de cara gera uma tinta preta látex, pois, para minha surpresa ou para minha angústia, assim que o ator começa a derramar essa tinta látex no meu rosto e no meu olho, as minhas pálpebras começam a colar uma na outra, eu estava só no começo da gravação, ainda tinha muita coisa pra acontecer, já não estava enxergando coisa alguma e aquele látex começa a arder nos meus olhos, é “um Deus nos acuda”, e depois daí vem glitter rosa, penas, sutiã, fiquei uma verdadeira galinha depenada, foi mais ou menos assim que aconteceu no “Embrace".
No “Woven", que ainda é uma dessas peças de resposta ao presidente naquele período recentemente eleito, também vai falar da importância dos imigrantes em solo americano, de como eles costuram a história do país. E assim, naquele período eu morava em um estúdio, o que a gente pode dizer aqui no Brasil, numa famosa quitinete, super pequeno mesmo, e a gente transformou aquele estúdio de morar em um estúdio de gravar.
O que aconteceu é que nós conseguimos alguns LEDs com amigos, três câmeras, trinta atores envolvidos, elástico para todo lado da casa, na sala, quarto, que era tudo o mesmo espaço, um backdrop, um rolo branco de doze pés, e imagine que a gente fez toda essa gravação, ela está disponível no YouTube. Quando você vê o resultado da imagem, você não poderia suspeitar que cabia tanta gente, tanto aparato e, ainda mais, essas luzes de LEDs penduradas no teto apenas com fita crepe, que a gente usa no set de gravação, num tipo de acochambrado lá, que eu aprendi com um amigo meu americano, que até hoje eu ainda uso em momentos assim de emergência, que eu tenho que pendurar coisas com fita no teto, no caso, todas as luzes ficaram durante três dias penduradas e nós conseguimos fazer nossa gravação.
A última história se dá na produção de um comercial nacional para a Índia, em que eu fui recomendado para um cliente e para agência de publicidade de lá, tanto da marca quanto da agência em si. O que acontece é que, no momento que recebi esse convite, estava severamente debilitado fisicamente. O projeto, a partir do momento que foi contactado até a sua execução, foi de exatamente dez dias. Pois bem, em dez dias eu produzi um comercial internacional para uma marca de perfume indiana com sucesso de gravação, com uma equipe de cinquenta pessoas, uma das locações mais caras de Los Angeles, em que a diária custa 10 mil dólares, que é o prédio da Universidade do Sul da Califórnia.
Consegui locação pela metade do preço, fechando a $5.400,00 dólares. Com doze horas e meia de diferença entre a comunicação minha em Los Angeles e da diretora e de sua assistente na Índia em Dubai. Tudo isso feito comigo deitado em uma cama. Pois que fique para os autos, esse produtor e diretor aqui consegue trabalhar e entregar material de qualidade, equipamento, casting, foi a maior parte feita somente por mim de uma cama.
Como era o meu primeiro projeto com um orçamento bem maior do que eu já havia trabalhado, eu não quis arriscar erros, eu queria entregar um trabalho de qualidade em que eu tivesse controle da situação, portanto, acertado ou não, acredito que entregamos o que nos propúnhamos e foi sucesso. Era para o perfume “Park Avenue”.
5) Imagine o cenário: você é um diretor (de qualquer país) no set de filmagem de um filme memorável. Quem seria, em qual filme, e por que essa experiência seria tão marcante para você?
L.P.: Agora você fez aquela pergunta de matar o coração de um diretor por infarto. Seria um sonho poder viver por um dia a vida de tantos mestres e obras-primas que já foram feitas. É impossível eu te dar apenas uma resposta. Se antes eu falei da criança que gostava do Menino Maluquinho e os 3 Ninjas; depois, o adulto, mesmo que eternamente criança, passei a gostar de O Rei Leão e Forrest Gump; aqui, nesta resposta, se eu tivesse a chance de ser um mestre ou de trabalhar numa obra-prima, eu estaria em tantos, que é até difícil, mas vou listar os que vieram à cabeça: gostaria de ser Peter Docter ou Ronnie Del Carmen, diretores de Divertidamente, da Pixar;
Pedro Almodóvar em Fale com Ela ou Kika; Alejandro Jodorowsky pelo Poesia Sem Fim; O Rei Leão, do Roger Allers e Rob Minkoff; Forrest Gump, do Robert Zemeckis; Christopher Nolan, pelo Batman – O Cavaleiro das Trevas; O Sentido da Vida, dirigido pelo Terry Jones e Terry Gilliam; e no documentário dirigido pela Petra Costa, que ficou em destaque pelos Oscars e que merece nossa atenção pela forma de desenvolver esta linguagem de documentário, com o filme Democracia em Vertigem e também Elena. E vou finalizar com Fernando Meirelles, com Ensaio Sobre a Cegueira.
Vou dizer, em breves palavras, o porquê de cada um deles: Divertidamente, pela Pixar, se destacar como um estúdio que desenvolve com maestria esta linguagem e fortes roteiros. Então, primeiro, eu estaria muito interessado no desenvolvimento do roteiro e, segundo, na capacidade deles em imprimir emoção numa animação em 3D. Eu tenho zero experiência com animação, então animação em 2D ou 3D me valem o motivo pelo qual eu coloquei na lista O Rei Leão e Divertidamente, que eu os destacaria logicamente pela força dos roteiros, cada um no seu viés de drama (realista, visceral e, às vezes, surreal) e de comédia.
Um documentário superpoético como Democracia em Vertigem, que é particular, mas que fala de toda uma nação. O filme consegue capturar um momento histórico brasileiro, eternizando-o. Todos os escândalos, falhas, injustiças e absurdos, usando a perspectiva da primeira pessoa, narrando para a gente. Já em Elena, ela desenvolve com pessoalidade questões que são de outra pessoa, no caso, o suicídio de uma irmã, que ela transforma num grande presente de luto e poesia.
Em Ensaio Sobre a Cegueira, me interessou a capacidade que o Fernando Meirelles tem de trabalhar obras adaptadas para a tela de forma tão autoral, que, apesar de alguém já ter escrito essa história, ela parece original. Ela ganha uma camada de profundidade que acrescenta à obra, dando complexidade a ela. O filme me instiga a pensar em uma São Paulo pós-apocalíptica, além do absurdo de acordar e não ver mais nada.
O ensaio me chamou muito a atenção por ser um diretor brasileiro e uma coprodução do Canadá e Japão, com atores renomados. Imagina como seria trabalhar com esses atores e enfrentar as inseguranças de estar com atores e atrizes tão bem estabelecidos? E ele ainda consegue fazer um filme provocativo, além da fotografia e paleta de cores, que é um elemento narrativo importante. Técnica, genialidade, criatividade em abordar ou criar uma obra e torná-la sua. Um cinema de autor mesmo. Muito forte.
Acho que ser Almodóvar em Kika ou Fale com Ela é entender personagens complexos, que vão muito além de uma caricatura ou psique simples. O Almodóvar trabalha com um universo decadente e, ao mesmo tempo, muito visceral, muito dolorido, ao mesmo tempo em que há (trági)comédia presente, cores fortes e personagens intrigantes. O Alejandro Jodorowsky tem uma questão autobiográfica trabalhada na força das multidões, símbolos teatrais. O filme parece realmente um sonho acordado.
O Forrest Gump é pela maestria do roteiro, que se traduz em uma narrativa que é uma aula de como contar uma história. Tantas cores, contrastes, um herói que vive de tudo, apesar das debilidades que o mundo diz que ele tem. Eu queria estar no set do filme para ver mesmo como eles trabalharam com o ator principal, o Tom Hanks, e como fizeram os efeitos especiais, que em muitos momentos misturam arquivo com ficção, inserindo filmagens novas em vídeos pré-existentes e de outro tempo, num período em que esse terreno de efeitos especiais ainda era explorado. E funciona super bem na tela.
Um filme de ação como Batman – O Cavaleiro das Trevas, principalmente por conta dos diálogos do Coringa. Gostaria de ver também como funciona a dinâmica de um filme de ação: tiros, bombas, explosões e todas as complexidades de cena que envolvem uma equipe enorme, e que qualquer ato falho pode comprometer a vida de alguém, pois a segurança está muito em questão.
Monty Python – O Sentido da Vida, porque são quadros ou sketches magistrais, fundindo-se numa comédia para fazer pensar, que vai além da piada pronta que funciona só em uma região. São assuntos que vão do regional para o universal e que nos tocam até hoje. O filme é uma aula do desafio de fazer comédia provocativa.
6) Fazer cinema envolve muitas variáveis: esforço, investimento, paixão, talento... E a sinergia entre esses elementos faz o resultado. Qual trabalho em sua carreira você considera o melhor?
L.P.: Eu já dirigi videoclipes, como “Los Angeles”, e também experimentei adaptar teatro para o audiovisual, como no caso de Love, Shoes and Death, que nasceu da peça “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, do Plínio Marcos, transposta para um curta em inglês.
Mas entre esses trabalhos tão diversos, destaco Concrete River, uma obra que acompanha uma personagem que chega a uma cidade onde o rio é de concreto, e ali passa por sete experiências de quase morte — tentativas de suicídio que falham. É uma narrativa carregada de simbolismo e crítica, com forte influência da poesia concreta e motivada como resposta política à eleição de Donald Trump.
No entanto, as produções das quais mais me orgulho, tanto pelo resultado artístico quanto pela complexidade que carregam, são Under Water: Dive Deep (2016) e Erase Me (2017).
Under Water: Dive Deep é alegórico, com personagens que são metade humanos, metade animais, cada um representando uma classe social diferente — um rato, uma borboleta, um coelho. Há um maestro que rege o mar, com uma plateia formada por porcos, zebras e tigres. A estética remete diretamente à obra de Alejandro Jodorowsky.
Tenho muito carinho por esse projeto. Enfrentamos muitos desafios: gravar em espaço público, sob sol e vento, manter uma equipe unida e exposta à praia por dias. O roteiro trata da sabedoria, da escuta, do luto — de uma mãe que perdeu o filho afogado e tenta ressignificar essa dor. Os personagens que ela encontra têm suas próprias camadas: um coelho trapaceiro e cadeirante, uma borboleta trans aprisionada e um mendigo cego e mudo, que é um rato. São figuras que, mesmo na margem, oferecem à protagonista a chance de reconstrução interior.
Erase Me, por sua vez, também fala de classes marginalizadas, mas se aprofunda na questão de identidade, abandono e gênero. A protagonista, uma mulher trans, deseja reencontrar o pai que a abandonou — não para resolver questões de gênero, mas para entender a ausência que moldou sua formação como ser humano.
Me orgulho demais da equipe envolvida nesse projeto: Bruna Nogueira, maquiadora de Jogos Vorazes; Tim Wolf, de Meu Amigo Hindu; a atriz e cantora Talma de Freitas, que se apresentou na cerimônia de encerramento das Olimpíadas de Londres 2012 ao lado de Carlinhos Brown; e Érika Rach, artista plástica mexicana de enorme sensibilidade sobre o feminino.
M.V.: E quanto a arrependimentos? Ou, caso não tenha, algo que faria diferente?
L.P.: Em todo trabalho há algo que poderíamos ter feito diferente. No Under Water, por exemplo, tivemos problemas de áudio. Em Erase Me, faltou uma diária a mais — eu queria separar a cena do estupro da boate e da dança. Isso teria dado mais potência ao impacto narrativo. E, claro, sempre desejamos mais tempo e dinheiro para desenvolver melhor nossas ideias.
Me entristece quando um projeto não chega à finalização. Como produtor, às vezes não está nas minhas mãos. É o caso de Sick Day, gravado há mais de um ano e meio, que ainda aguarda trilha e composição, embora a edição e a cor estejam prontas. O filme trata de um serial killer que planeja seus assassinatos meticulosamente. Mas a grande questão é: ele também é uma vítima social? Ele tem uma deficiência psicológica, carece de suporte. Será que sentimos empatia por ele?
Outro exemplo é Duplicitous, um curta de terror que ainda não foi finalizado. A direção foi feita, mas a produção executiva segurou o projeto — e, infelizmente, como o dinheiro não saiu da nossa equipe, não temos como resolver. No cinema independente — ou mesmo nos grandes estúdios — aprendemos que quem financia muitas vezes determina o destino da obra.
É um arrependimento clássico: participei da produção de Happy Anniversary, um curta encomendado pela Alibaba Pictures na Califórnia, parte do projeto Small Heart Big Film. Foram selecionados 10 diretores chineses promissores, com orçamento de 3 mil dólares cada, para retratar ONGs em formato de curta. Fui convidado por um dos diretores para produzir a obra — fazer acontecer com a verba limitada.
O curta foi analisado por um júri que incluía Billy Zane (Titanic), John Lee Hancock (Walt nos Bastidores de Mary Poppins) e ninguém menos que Steven Spielberg. Sim, um filme que produzi foi assistido por Spielberg. Meu arrependimento? Eu não era o diretor. A parte do elenco não passou por mim, e acredito que um elenco mais forte teria elevado o projeto. A experiência foi marcante, mas deixou essa lição.
Então, essas são minhas glórias e meus arrependimentos.
7) Para finalizar, deixe uma frase ou pensamento envolvendo o cinema que representa você.
L.P.: Gosto de pensar que tudo está ligado ao ciclo da vida. Trago algumas citações que me acompanham:
“Minha mãe sempre dizia: a vida é como uma caixa de chocolates. Você nunca sabe o que vai encontrar.”
— Forrest Gump (1994)
“Lembre-se de quem você é.”
— Mufasa, em O Rei Leão (1994).
E este diálogo, também de O Rei Leão:
Mufasa: "Temos que respeitar desde a formiguinha até o maior dos antílopes."
Simba: "Mas nós não comemos antílopes?"
Mufasa: "Sim, Simba. Mas deixe-me explicar: quando você morre, seu corpo se transforma em grama, e o antílope come a grama. Assim, estamos todos conectados no grande ciclo da vida."
Também carrego comigo esse pensamento de Jack Kerouac:
“Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que veem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. [...] Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo são as que o mudam.”
E, por fim, uma máxima que muitos no cinema conhecem:
“Um cineasta que só sabe cinema, nem cinema sabe.”
Essas frases representam bem o que acredito: lembrar quem somos, nos inspirar nos outros — principalmente nos invisíveis e marginalizados — e estar prontos para as surpresas da vida. Porque ela é assim: a gente planeja de um jeito e ela vem e nos transforma. E quando acharmos que já sabemos tudo, talvez seja hora de trocar de roupa — e de armário.
M.V.: Obrigado, amigo. A gente se vê nos filmes.